As rampas da Vila podem intimidar quando funcionam de verdade. Nesta foto Heitor Alves descendo a ladeira durante o WCT Brasil 2007. Foto: ASP Cestari/Covered Images.
Na vida sempre nos deparamos com situações e fatos inusitados, no surfe o mesmo acontece. Quem nunca se deparou com uma cena, um momento ou uma situação inesperada? Muitas vezes, são bons momentos que queremos guardar para sempre na memória. Em outros casos, são situações tão ruins que queremos mesmo é esquecer. Embora, nem sempre tenhamos essa capacidade.
Uma das situações que mais me marcaram no surfe ocorreu numa manhã de Domingo, na Praia da Vila, em Imbituba. Era janeiro de 94, a temporada do circuito mundial seria aberta com o OP PRO, em Imbituba, sendo o primeiro evento válido pelo WQS. A expectativa entre a galera local era enorme, afinal, há muito tempo a cidade não sediava um evento de porte, apesar de proporcionar uma das maiores e mais constantes ondas do Brasil. Contudo, a “maldição” dos campeonatos se abateu sobre a Vila quatro dias antes do evento começar. Durante a semana anterior rolou um mar alucinante e perfeito de seis a oito pés. Porém, na semana do campeonato o forte vento nordeste (terral, mas que quando sopra forte apavora qualquer mortal) se abateu sobre Imbituba e o mar colou de tal forma que todos acreditavam se tratar de obra de algum “mandingueiro”.
Na sexta-feira dia 21, com um belo dia de sol, mas com ondas de, no máximo, meio metro, tudo indicava que a maldição se concretizaria. No sábado não foi diferente, o dia estava alucinante, mas as ondas estavam decepcionando à todos, em particular, à galera local. Já se ouviam críticas sobre a decisão de levar o campeonato para Imbituba naquela época (verão), que se fosse em tal lugar teria onda, que isso e aquilo. Porém, no final de tarde começou a soprar uma leve brisa de leste. Era o sinal que os nativos precisavam para gritar aos quatro ventos que a Vila iria quebrar.
Na noite de sábado rolou a entrega de prêmios realizada pela ABRASP, aos melhores de 93, nas dependências do Imbituba Atlético Clube. A noite foi forte, com muita gente bonita e a presença de vários top’s brasileiros. Naquela noite, ainda lembro que muita gente perguntava se iria ou não rolar as ondas. Quem era daqui, só tinha uma palavra: ALTAS. E não deu outra!
Minha irmã me acordou por volta das cinco e meia da manhã (como havia pedido) e fiquei naquela, vou ou não? A minha cama estava tão boa (algumas horas depois eu estaria pensando que deveria ter ficado). Resolvi não pensar muito. Levantei, agilizei as minhas coisas, peguei algumas sementes de guaraná e me joguei para a Praia. Quando saí de casa já senti a forte maresia. Dobrei a esquina da estrada que leva ao Araçá, roendo algumas sementes de guaraná, com a prancha debaixo do braço e a lycra na mão, correndo devagar. Quando me aproximei do trilho já ouvi as ondas estourando.
A visão que tive de cima do trilho foi indescritível. Linhas de seis ondas com paredões enormes marchavam em direção à praia. O outside do Castelinho estava uns trezentos metros mais atrás do que o habitual. Para surfar no Araçá, só de jet-ski (na época nem existia tow-in por aqui).
Tomei o rumo do centro, costeando a Lagoa da Bomba, roendo meus guaranás. Passei na casa de um amigo, o Katz, para acordá-lo. Ele levantou com uma cara mais amassada que camisa em fim de festa. Botei a maior pilha, tomamos uma vitamina e nos jogamos para o Canto. Seguimos pela rua do barraco e quando chegamos já havia uma galera dentro d’água.
As ondas estavam quebrando lá fora, quase atrás da ilha (Santana de Dentro). A ondulação de leste fazia com que as esquerdas se tornassem quilométricas terminando quase no Jangadeiro. As direitas eram apenas um drop e já enroscavam no canal. Entramos no canal Eu, o Katz e o Dálmata. Eram seis e meia da manhã. Estávamos em alto astral, e da praia as ondas pareciam menores do que realmente estavam. O mar estava meio storm e balançado. A forte corrente do canal nos largou debaixo do pico rapidamente.
Na água vários profissionais estavam treinando antes do início do campeonato, que tinha previsão de iniciar às nove horas. Entre eles, lembro do Wagner Pupo que pegou uma esquerda animal, do Tadeu Pereira (que foi o campeão da etapa) e do Paulinho Matos (na época conhecido como Paulinho do Tombo). Logo entrou a série e aí sim tivemos a noção do tamanho do mar. A série entrou lá atrás com 10 pés sólidos, pesados e impiedosos. Quase levei na cabeça, pois o movimento de água era tamanho e a corrente tão forte que nos levava para o meio da praia. O Dálmata, com uma 7’6 despencou ladeira abaixo com o lip e tudo e completou o drop numa direita enorme, alguns metros abaixo vi a prancha dando “tchau” e o cara ressurge depois de algum tempo dando risada e dizendo: “Pô foi o maior caldão!”.
Eu e o Katz ficamos nas intermediárias, que tinham uns 6 pés, pois não tínhamos prancha para aquele mar. Peguei uma direita que morreu no canal e estava voltando quando entrou uma série ainda mais atrás. Remei junto com toda a galera para próximo da ilha tentando escapar do caldo. A série apontou com um direitão que quebrou bem na minha frente. Quando estava furando a onda segurei firme a prancha para não perdê-la e ter que sair nadando daquele mar, que parecia uma máquina de lavar gigante. Quando estava bem embaixo da onda senti um forte tranco no braço direito e uma dor terrível, imediatamente, perdi por completo a força no braço.
Emergi, tomei ar e sai nadando com apenas um braço em direção ao restante da série. Furei cinco ondas, nadando e mergulhando. Gritei e acenei para a galera que estava à minha frente, mas o barulho que as ondas faziam na bancada silenciavam meus gritos. Um filme começou a passar rapidamente na minha cabeça. Instantaneamente, vi cenas da minha vida que há muito eu tinha esquecido, pessoas queridas e lugares que conheci me voltaram à memória. Pensei: “Acho que vou morrer, é isso que acontece quando a gente vai morrer. Relembramos tudo que vivemos”.
Tudo isso aconteceu muito rápido e continuei gritando. Outra série apontou e ninguém me via ou ouvia. De repente o Paulo Sefton (surfista das antigas e desbravador de várias praias do Sul do Brasil), que estava mais à frente virou-se e me avistou. Varei outra série, nadando e mergulhando. O Sefton, veio em minha direção e perguntou o que tinha acontecido. Eu disse: “Acho que quebrei o braço. Cara, preciso que tu me ajude a sair daqui”. O Sefton tentou me tranqüilizar, dizendo: “Fica frio que a gente vai sair”.
Graças a Deus, eu não tinha perdido a prancha e a cordinha agüentou o tranco. Puxei a prancha, deitei com o peito na parte de trás, puxei meu braço direito, que não respondia a nenhum movimento, e o Sefton me empurrou numa onda da série, remei com todas as forças que tinha e me grudei na prancha como pude com o braço esquerdo. A onda era tão forte que quase me virou no drop, tive que jogar todo o peso para trás para evitar que a prancha embicasse. Peguei uma esquerda e fui parar quase no meio da Praia. O Sefton veio na onda de trás e me ajudou novamente a pegar outra onda.
Saí da água e lembro do Caluta (juiz de surfe local) e do David Husadel (na época presidente da Abrasp) vindo ver o que havia acontecido. Em seguida, chegaram os paramédicos que me encaminharam ao hospital. Chegando lá, é que entendi o que havia acontecido e como estava feio o negócio. Sofri uma luxação no ombro, em função do impacto da espuma da onda (aquilo era um turbilhão). Meu braço ficou pendurado e rompi alguns ligamentos. Tiveram que chamar o “Urso” médico anestesista, que também estava dentro d’água, e o ortopedista, para poder colocar o braço no lugar. Esperei duas horas até o ortopedista chegar, a enfermeira queria me dar um remédio para dor e disse que eu esperaria até o outro dia, a não ser que o atendimento fosse particular. Eu disse: - Moça até para respirar dói, você acha que eu vou esperar até amanhã? Faz particular mesmo!
Todo o respeito que já tinha pela Vila e pela vida foram redobrados. Naquela manhã, entendi que o surfe é muito mais do que pegar onda. É estar preparado para situações de risco e de sufoco. Sobretudo, é estar preparado para ajudar alguém quando necessário.
Obrigado Paulo Sefton, e obrigado meu Deus, por colocá-lo no lugar certo, na hora certa.
P.S. Conversando com o Sefton no dia seguinte, quando fui lhe agradecer, pessoalmente, por ter salvo a minha vida, ele contou que não me ouviu gritando e que não sabe porque olhou para trás naquele exato momento. Só posso crer que os desígnios Divinos são providenciais.
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